Precisava Um Esmalte Dessa Cor?

Um Escândalo.

O Rato Cinza
5 min readJul 25, 2020

Sementes de gergelim voando por todo canto. Está registrado na rede social. Muitos gargalharam, outros se doeram. E o pequeno círculo de artistas que se frequentavam, curtiam-se uns aos outros, lendo as postagens uns dos outros, viu tudo acontecer. Como pôde?

Saiu do Reality Show onde era considerada a maior estrategista. “Vai jogadora”, “minha menina é poker face”. O twitter não ignorou a competidora de estilo único. Controlava a cozinha e especializou-se em ouvir desabafos dos concorrentes. Movimentava mentes e estômagos como piões no tabuleiro e tornou-se imprescindível no jogo até o dia em que foi eliminada pelo favorito da casa.

Colhendo os frutos, chegou ao programa de Televisão para aprender uma receita. “Menina, você causou ali dentro!”. Estava de frente para Virgínia Fraga, mulher bonita demais. Mas a enxadrista também tinha seus encantos e não se intimidava facilmente. Será que você se lembra, Virgínia?, a jogadora pensava.

Na cozinha havia posta de atum, gemas, mostarda Dijon, azeite, molho inglês, pimenta do reino e tabasco; havia filé mignon cru, alcaparras, havia a panturrilha bem desenhada da apresentadora, o decote sobre o peito sardento, a cebola roxa picadinha, o vestido azul escuro contrastando com as unhas pintadas de um amarelo alegre, uma alegria para cada duas provocações; havia o pote contendo o diabo do gergelim preto e branco. O diabo e o inferno inteiro morando num grão de gergelim.

As mãos de Virgínia, com as unhas amarelas, picavam o bife em pedacinhos. Não tem como ela não se lembrar, pensava a estrategista. Aqueles movimentos causavam certo incômodo nos olhos da jogadora. A perna estava mole. “Ia… ha-ha-há”, a estrategista ouviu um sussuro.

Com as coisas do steak tartare encaminhadas, Virgínia pegou no atum. “Ia… ha-ha-há” outra vez. Então as pontas dos dedos da apresentadora passeavam sobre a superfície daquela carne escura, complexa, vedada a paladares simplistas. As mãos saíam de cima do peixe, nunca as duas ao mesmo tempo, besuntadas de azeite para grudar o gergelim. Ela gesticulava, oferecia provas em colheradas de mostarda dijon à jogadora, pedacinhos de ciabatta com filetes do azeite. “Ia… ha-ha-ha…”, a jogadora ouvia o sussurro.

— Estão ouvindo isso? — perguntou Virgínia — Um iarrá, coisa assim? O tempo todo.
— Eu não — disse a jogadora, nervosa.

A jogadora forçou os músculos da coxa para colocar as duas pernas bem juntas.

— Hum… agora parou — disse Virgínia.

Atum sendo preparado. Vinham os cheiros, as provas de pão com molho, os gostos complexos, azedos, doces e amargos, os caldos espessos. A jogadora via tudo rodando. Um pouco de sangue no cérebro seria bom neste momento. De repente, tela azul, preta, tela branca. Não enxergava nada, a jogadora. O que teria acontecido? O sabor do caldo espesso na boca e do nada um turbilhão de memórias, do curso PH, dum Grajaú dos anos 90, ela e Virgínia no pré-vestibular onde houve a interrupção de uma amizade que estava por nascer. Tudo isso enquanto os olhos mergulhavam no leite mais branco. “Não tem como não lembrar, Virgínia”. Depois a vista voltou a registrar formas desfocadas e, numa aceleração repentina, chega a nitidez que faltava.

Escândalo: ao voltarem as imagens, três dedos da mão direita de Virgínia estavam enfiados na boca da jogadora; escândalo: a mão esquerda da jogadora agarrava o pulso de Virgínia e a única conclusão que se podia extrair é de que estaria disposta a fazer força para que aqueles dedos continuassem dentro de onde estavam; escândalo: todo o estúdio televisivo em silêncio, o intervalo comercial não fora chamado, estavam em cadeia nacional. Os olhos de pânico de Virgínia refletiam a expressão de pânico da jogadora. “Que caralhos você tá fazendo? Solta a minha mão!”, a apresentadora protestava com movimentos de lábio sem som. “Tua mão que veio parar aqui”, a jogadora se explicava através duma vã telepatia.

Seu corpo não conversava com o cérebro e, apesar do vexame e da consciência de que aquilo precisava ser encerrado, a jogadora seguiu chupando feito uma condenada! A superfície da língua sentia com riqueza de detalhe o relevo e os sulcos das impressões digitais. Sentia o gosto do azeite, o sal e a pimenta. Já com a boca vazia, tentava se explicar. “Lambi mesmo! Não aguento mais!”

Com tanto tempo enfurnada, controlando cada instinto, uma jogadora calculista desmorona. Fora do confinamento, continuou mascarada. Não falava nada sobre a própria vida. Foi revelada por inteiro no pior lugar possível, com o sadismo do produtor adiando o intervalo comercial até o momento de máximo engajamento. #aloka nos trendings.

Era apegada à citação dum filósofo desses de palestra em empresa. Segundo ele, somos a mistura das coisas que tentamos esconder com os cacoetes que deixamos escapar ao desempenharmos o disfarce. No estúdio do programa matutino, ela esperneou sobre o Grajaú, sobre o seu encanto secreto pelas meninas com pé de lancha mas de uma delicadeza não usual e unhas pintadas em cores não-óbvias que, quando repousam pé sobre pé, têm os dedos dobrando como se fossem tímidos na intenção de se esconderem. Foi à lona declamando “O rosto, dessa vez mais bonito, só não mais que o pé, dessa vez mais bonito, só não mais que as mãos, dessa vez mais bonitas, só não mais que... e um ritornello infinito”. Um jeito e tanto de desmaiar ao vivo.

Foi parar na cadeia, por engendro do marido de Virgínia. Uma prisão que não se sustenta perante um juiz. E se é verdade que não se ouviu nada saindo da boca da apresentadora desde o episódio ao vivo, é porque já naquele dia ela se pôs muda em virtude do choque. “Foi mesmo crime o que a gente viu? Sei não…”, alfinetou Tico Yarley no twitter. Mas ninguém levou a sério. A jogadora gastaria uns dias pisoteando baratas na carceragem antes de ter liberdade novamente.

Cinco dias depois, escândalo: denúncia de agentes carcerários anônimos sobre visitas íntimas secretas em horários especiais; nove dias depois, escândalo: máfia das quentinhas na cadeia. Fotos de lagostim na manteiga, crème brûlée, pastel de nata e ovos moles entrando clandestinamente na prisão; passados quatorze dias, escândalo: casamento de Virgínia Fraga com chefe de gabinete do Governador acaba depois de quinze anos.

O Rato, 24/07/2020
https://twitter.com/oratocinza

.

--

--