6. Retorno a Cem Metros, Antiepílogo (Conto)
Na cidade, o gás não acaba nunca.
—E esse brinco de pena aí? Bonito, Passa na Voluntários sim, senhora, Tô sem troco, vai saltar onde?, Tá na faculdade? Legal, parabéns!, Motor quebrou. Vamos descer todo mundo por favor, Eu tenho que contar troco e dirigir ao mesmo tempo, Tá feliz? Por isso respondeu cantando?, Eu só conheço a Irmã Dulce, — Esse homem é muito devagar, assim não dá, Vê se ele tá olhando pra mim, Terceira vez assaltada esse ano, tá que tá, Ele tem uns olhinhos tristes, Generosa… que comédia!, Você fecha o olho pensando num cara indeciso. Quando abre, tá boiando morta num rio, vira até pintura , Ele tem que fazer a parte dele, Tudo legal. Respondo sempre igual, Não, bobo. Um eu-lírico, A Bellucci é uma beata italiana, — Quer ajuda pra levar essas bolsas?, Você tá sozinho? Tem quantos anos?, Desculpa, garoto. Se o teu pai não falar comigo eu não vou te levar na Cultura Inglesa, Terceira renegociação com o Itaú, O remédio não tá mais fazendo efeito, É mesmo? No Jockey tem teatro? É pros cavalos se distraírem? , Evento de quê?, Quer ouvir música?, E o volume?, — Vamo roubar o táxi ali, o cara tá de bobeira, Vai virar bonequinha, Tá cheio de taxista policial nessa porra, Não é só motorista de Uber, taxista também, Tá de sacanagem, mermão, Tu viaja demais, fica ligado, O que a gente vai fazer com esse cara?, Na moral, eu quero o rabo desse moleque, quero brincar, Bora pra Vargem Grande, Pedra! Pedra de Guaratiba!, — Me leva na Cultura Inglesa, Peraí, vou ligar pra ele, Cadê meu pai, Só tem a empregada, fala com ela?, Consegui, meu pai tá no telefone, Volume do quê?, — Aqui vende nitrato de potássio?, Passa as panelas no crédito, por favor, Me vê quatro sacos de prego. Saco de três quilos, Vou trabalhar num evento, Essas bolsas? Ah! É equipamento de som, Quanto é o chip de celular?, Um ferro de solda e uma pulseira antiestática, por favor, Peraí! Tá indo na palestra?, Tu é um pau no cu!, — Você sempre é sorteada, Se eu descobrir porque tu continua pobre eu te conto depois.
Um inventário de gritos e cochichos. À beira de um rio. Em torno do dinheiro. Um rio, um ouro, um touro, uma vaca, um pau, uma buceta, ou melhor, dez paus e dez bucetas, nem todos se encaixando. Com isso você já começa uma cidade. E nas metrópoles, todo dia vai ser o dia da grande sentença final contra pelo menos um alguém. Vinte e quatro horas, três tomos de oito, duas bandas de doze. Na largada você acorda, na metade você come, na saideira você fode. Se tiver sorte. Aí, um dia, vomitando sangue, você morre. E não é desconcertante que as decisões, os pensamentos, as dores todas das vidas dentro duma cidade aconteçam e dissipem como se fossem bolhas num copo de refrigerante barato? Só que na cidade o gás não acaba nunca. No dia seguinte, tudo se repete de forma a parecer que a jornada anterior foi diferente.
— Eu quero aquela do programa de televisão, Quanto custa a hora dela?, O Satyricon tem um peixe maravilhoso, Mas aquela churrascaria da Lagoa tem o sorvete de ananás, Eu quero ir no sorvete de ananás, tá decidido, Aqui no Rio vocês não são bons de restaurante, né?, Sempre que eu venho palestrar aqui eu fico no sufoco pra achar onde comer de noite, Eu ainda tô vendo como é esse negócio de bitcoin, Me traz um champanhe e uma pantufa, Rapaz, hoje em dia você só precisa ter vontade. Pega uma bicicleta alugada, cadastra no aplicativo e entrega. Não tá feliz? Então me diz onde você tava trabalhando antes, Trabalho social eu acho bacana. Eu faço doação e vou montar um curso de educação financeira com bolsa integral, O palco vibrou bastante, acho que esse ano foi o maior, Escutou isso? Tipo um “bip-bi
O Rato, 05/05/2020
Retorno a Cem Metros faz parte da coleção Betume, Contos do Asfalto. São histórias interligadas. Lendo os próximos contos, você saberá quem estava dentro do táxi, do caminhão, saberá o que aconteceu no hipódromo. Saberá quem foi atropelado. Acesse os outros contos abaixo:
