4. Tração Humana (Conto)

O hálito do Rio de Janeiro está no ar.

O Rato Cinza

--

Tarde na Favela da Rocinha com o povo preparando o fim do expediente. Batidas de portão de aço, barulhos de colisões de botijões de gás e de garrafas de Brahma dentro de engradados de Skol. O hálito do Rio de Janeiro está no ar, saído das bocas de bueiro. Lá no alto, Estrada da Gávea 255, é de onde parte Daniel. Ele desce pela espiral das ladeiras do morro até chegar aos paredões verdes de trepadeiras e tintas, ao ar finalmente fresco da rua arborizada. Zona Sul de verdade. Sua rotina é costurar as ruas na bicicleta, distribuindo o hamburguer, a esfiha, o joelho quentinho, o que for necessário, movimentando as encomendas via aplicativo. O veículo é o de sempre, mas hoje o compromisso é diferente. Foi sorteado para o evento de fim de ano da FoodTech LTDA e assistirá a uma palestra do grande consultor Fernando Cotrim. Está um pouco atrasado.

Ele dosa a velocidade no declive da Rua Marquês de São Vicente. A cabeça ferve. É a primeira chance que tem de participar do encontro, mesmo superando ano após ano o desempenho de outros colaboradores medíocres e sem foco. Aliás, esta é uma palavra essencial. Fo-co. Daniel tem e entende nos detalhes a nova economia dos aplicativos, o mundo do novo trabalho. Entende Fernando Cotrim, esse homem sempre em movimento, sem tempo para reclamar da vida ou transferir suas culpas a terceiros.

A caminho, procurando brechas, serpenteia o asfalto e ganha tempo. O ônibus passa rente, tira um fino das costas dentro do calculado. O dia é bom. Olha os prédios em volta e acha bonito, mas sabe onde está o verdadeiro charme: os casarões e sobrados velhos de dois andares. Vê a BMW passando e tem vontade de ser alguém a mais. E é grato pela sorte de ter descoberto o mapa do caminho antes dos 25 anos. Ele só precisa correr.

Ao contrário dos tontos com os quais disputa os territórios de Gávea e Leblon, Daniel faz os cursos online, baixa os pdfs. Sabe que se dormir terá alguém acordado para fazer o necessário. De-di-ca-ção. A segunda palavra. Cumpre a risca todo o roteiro e assiste a filmes de superação. Cola na parede frases para serem repetidas em momentos cruciais. Quando sente cansaço extremo, ele procura beleza, molha-se com pequenas gotas de prazer estético. É assim que faz quando reduz a velocidade na curva para a Rua Araripe, esperando dar de cara com a Letícia Sabatella, a quem já viu várias vezes andando por ali, sacodindo os cachos e refrescando o espírito do povo. Aqui neste ponto ele se frustra. Tudo o que vê na rua é a expressão de náusea e os olhos perdidos duma certa guria, Júlia, também entregadora, uma daquelas pedras no caminho que a geologia não explica. Existe só para roubar as entregas a mais que Daniel poderia conseguir no Baixo Leblon.

“Peraí! Tá indo na palestra? Espera!”, diz Júlia. Daniel freia já se arrependendo.
“Tô indo sim. Você não? Você sempre é sorteada…”
“ Aquilo num serve pra nada. E deve tá lotado! Se eu fosse você, eu não ia. Já participei três vezes dessa merda e ainda tô pobre.”
“Só que agora chegou a minha vez, né? Se eu descobrir porque tu continua pobre eu te conto depois”, diz Daniel, voltando a pedalar com triunfo. É um dos escolhidos.
“Tu é um pau no cu!”, ela grita.

Atrasado, sem Letícia, ele acelera pelo final da rua Araripe, sai do corredor de prédios e da proteção das sombras; leva uma rajada de sol e um chá de selim na espera do cruzamento antes da Avenida Visconde Albuquerque. Ali estanca, fermentando raiva. “Deve ter ficado de fora do evento, por isso tentou me embarreirar. Não faz nada por si e não quer que os outros cuidem da própria vida”. De fato, Júlia gasta muito tempo com coisas que não dão retorno. A maior parte das vezes em que Daniel a encontra na rua, ela não está fazendo entregas e é muito comum vê-la gastando dinheiro. Na terça, saía da filial do Pão de Açúcar do Jardim Botânico com panelas de pressão. Na quinta, estava metida numa loja de ferragens. E no sábado, saía dum quiosque de botânica de mãos vazias e falando mais abobrinhas sobre seus gastos temerários. “A burralda não tem foco! Compra um monte de porcaria. Panela de pressão pra quê? Prego pra quê? Fertilizante? Essa gorda não deve ter reboco na parede de casa e fica fazendo jardinagem?”

Daniel se dá o direito de julgar a falta de ambição dos outros entregadores desde que eles riram do seu treinamento de atleta para pedalar melhor. Riram das proteínas, das aulas de agachamento do YouTube. A calistenia reforça as coxas para as pedaladas e as pedaladas reforçam as coxas para a calistenia. Pre-pa-ra-ção. A última palavra. Foco, dedicação, preparação. O tripé do FDP System, desenvolvido por Fernando Cotrim.

O calor a essa hora é maior que o imaginado. Mas Daniel não foi pego de surpresa. Carrega a sua mochila box de entregador com a camisa reserva que vestirá na palestra. Também tem a toalha de rosto que vai molhar no banheiro da lanchonete próxima ao teatro para tirar o suor do trajeto. Ele só precisa correr. Em frente ao espelho, vai treinar os apertos de mão. São de dois tipos: o do Coffee Break e o do fim da palestra, não pode se confundir. Medirá mentalmente o tempo que leva da saída da mão do bolso direito até o ponto em que entra em contato com o interlocutor. Sabe bem que “trinta porcento do aperto de mão é o olho no olho”. Vai se destacar na presença de Fernando. Tem todo um arsenal de ganchos para fazer observações, tirados das falas de Cotrim no podcast. “Olha como a Coréia do Norte é atrasada. Eles são o país de terceiro mundo que mais usa boi pra puxar carga no campo.” Está cada vez mais próximo.

Corta os carros no engarrafamento da Visconde de Albuquerque. Um ônibus azul, outro amarelo, um caminhão e um Celta prata. Foco. Acelera a marcha na escola da prefeitura, fazendo o corredor mais estreito possível, o respiro é fundo e as pernas queimam. Força. Faltam cem metros para a lanchonete, duzentos para apertar a mão do Cotrim, tem que ter fé. Quando Daniel cruza a entrada do estacionamento, vem a BMW, a pancada, o esfolamento, as fraturas na costela, o vidro nevado pelo chão. Deitado no asfalto e zonzo feito peru bêbado, ouve uma voz. “Eu tenho que entrar com meu carro(…) Quê? Testemunha de nada! A senhora que atropelou!(…) Eu tenho um compromisso agora, dá licença!”. Ele vê um sapato de couro marrom e uma calça social diferente daquela que o pastor Robson usa no culto. É Cotrim, também atrasado. Não há o que pensar. Ali mesmo estirado, limpa o sangue da palma na calça jeans, esboça um sorriso de cãibra e oferece a mão para o cumprimento. “Olha a merda que você fez”. É o que ouve de seu guru enquanto tudo vai escurecendo.

Acorda no hospital. Um muquifo. Que dia é hoje? As primeiras horas de lucidez são dedicadas aos barulhos e gemidos dos velhos deitados nos leitos ao redor, numa contagem de decibéis que não abafa o eco do desamparo. Um santo liga um aparelho de TV. Sabatella é aguardada. “Parte dos restos mortais do economista e administrador Fernando Cotrim e do jornalista e palestrante Duda Braga já foram identificados pelos papiloscopistas da Polícia Federal. As demais vítimas ainda estão por serem identificadas”. É o que se ouve no intervalo da terceira novela. “Quando todas as impressões digitais forem recolhidas, serão efetuados os testes de DNA para reunir as demais partes não reconhecíveis dos corpos. O atentado a bomba, que matou dez consultores empresariais no camarim do teatro do evento de fim de ano da FoodTech e da FDaP investimentos, foi perpetrado pela entregadora de lanches, Júlia Figueira dos Santos, cuja sanidade mental é questionada pelos investigadores responsáveis. Uma credencial roubada, os registros de compra e as imagens das câmeras de segurança do comércio levaram a Polícia à autora da carnificina”.

“Ca-ra-lho”, diz Daniel. “A filha da puta tem foco”.

O Rato, 31/01/2020

Tração Humana faz parte da coleção Betume, Contos do Asfalto. São histórias interligadas. Lendo os próximos contos, você encontrará informações sobre Júlia e vai saber quem estava dentro do táxi e do caminhão azul. Acesse os outros contos abaixo:

  1. Cruzamento, Antiprólogo
  2. Boechat
  3. As Damas Entram e Saem
  4. Tração Humana
  5. Sigo Bem
  6. Retorno a Cem Metros, Antiepílogo

--

--