O Rato Cinza
10 min readAug 12, 2020

não pode me deixar embora sem saber quem eu, sou, eu sou aqui, não vou, ir embora, não ignora. sujeito você vírgula sabe eu real não verbo sabe como vai se acabar quando descobrir eu sou de você e você, é, mim de nós. Vladimir, feiticeiro russo, descendente de Rasputin; Ibrahim, espião judeu, sedento por vingança, vontade de sangue alemão; shhhhhiu… otário. Petri, príapo italiano, sedutor de damas casadas. shhhiu… burro. burro… inútil…

Ah! Não tinha visto você chegar. Ignore o que eu disse e vá se acomodando da forma que puder. O seu nome não interessa para esta história, por isso eu vou chamar você de testemunha. Então veja: tem um homem triste com as mãos no volante. As gotas de chuva fazem o barulho discreto, batendo na janela esquerda como se fossem os passos de um bando de insetos passeando num amontoado de folhas.

O nome dele é Maurício. Quarenta e dois anos. Taxista. Hipertenso. Foi posto nesse armário, só que não coube. Vai me dar trabalho. Ele passa de triste a raivoso. Olha a cidade em volta, a bagunça, o trânsito, o perigo, os lugares onde o dinheiro não chega. Circula de madrugada pelas ruas de Botafogo garimpando passageiros e abre a porta do táxi a uma garota de calça imunda e camisa xadrez. Vão a lugares fazendo rota desconexa à procura do que não se encontra. É uma drogada. Uma piranha drogada, hein Maurício? Francamente! Ela anda nos pés dos morros e nos condomínios de luxo dos colegas chincheiros, procurando alguém que venda fiado, mas ninguém parece interessado em receber uma chupada duma esquelética cor de papel. Morre em três anos, no máximo. O que você acha, testemunha?

Depois de um tempo, ela convence um cretino a aceitar a transação e Maurício é obrigado a ver a garota de joelhos lambendo o pau do bandido. Ela volta ao carro com a droga. Os olhos perdidos e o taxímetro rodando; ele decide que depois dessa corrida nunca mais vai circular de madrugada, roda a taxímetro; ela manda pegar o túnel que leva ao Centro da Cidade e quer parar o carro no acostamento da porra do Elevado Engenheiro Freyssinet, rodando e rodando e rodando o taxímetro; ela sai, agacha perto duma poça, puxa água da chuva para dentro da seringa e Maurício observa estarrecido pelo retrovisor. E o taxímetro rodando.

Ela se senta no banco de trás com expressão de nojo e depois com olhos vidrados e grandes, quando revela o que parece um rosto de princesa da mamãe no tempo anterior à primeira carreira de coca. Abre o zíper da calça sem cerimônia. Com o carro em movimento, injeta a droga perto da buceta e dá um grito. Pronto! A puta se machucou. Ele acende a luz interna e está ali a mancha escura, crescendo, no banco de tecido. E é o otário do Maurício quem vai limpar. ihihih… Shhhhhhiu… otário.

— Acabou o passeio. Cadê o dinheiro? — ele diz.

Ela pega uma maçaroca de grana rasgada e suja que não dá o preço do trajeto. Viaduto do Centro, três da madrugada, calote na corrida; uma mancha de sangue de xota no banco traseiro do táxi. Ele simplesmente não está cabendo no armário, ihihihi! Shhhhhiu… estúpido.

“Seu Rosto”, Pastel seco e carvão sobre papel A2 — Paulo Ricardo Amaral

O carro desce o elevado e devagar vai circulando pelas ruas imundas desse pardieiro de cidade, Rio de Janeiro, Bairro de São Cristovão, até encontrar um canto mais ermo perto dum botequim vazio. Pelo braço, ele vai arrastando a mulher para fora do carro. Primeiro um tapa na cara para ficar alerta. Depois um soco na barriga. Sem ar, ela dá a entender que concorda em não fazer estardalhaço. Ele enfia as mãos nos bolsos da camisa xadrez, vasculha na calça ensanguentada. No bolso traseiro, encontra mais notas que não dão o gasto. Arrasta a junkie para onde bem entende, com os gatos pingados em volta, no bar, uns dois ou três no máximo, olhando sem reagir. Você reagiria, testemunha? A gente sabe que não.

Leva a guria a uma sarjeta qualquer. Segurando-a pelos braços, ele abre a mão aos poucos, deixando ela escorrer em direção ao chão, lentamente, até — Espera! Espera, espera, espera! Muito bem. Vamos interromper por aqui. Prioridades! E nem adianta reclamar. Aqui você não manda nada, testemunha. Aqui ninguém manda!

Os bichos caminhando nas folhas somem, viram gotas; as gotas de chuva na janela lateral esquerda somem, viram nada; o dia não é frio, faz calor; não é madrugada, são dezesseis horas; as memórias de três anos atrás precisam voltar à gaveta. O homem triste tem corridas a fazer e o passado pode esperar.

No dia de hoje, a primeira passageira da tarde foi uma senhora de cabelo roxo com as sacolas de compra do Zona Sul. Depois foi a vez de uma gordinha vesga, mal vestida, com duas malas e uma mochila, pesadas. Maurício ajudou a levar a tralha à porta do evento num teatro chique dentro do Jockey Club onde ela contou que trabalha. E agora quem entra no carro é um pirralho que ele pega no paredão do hipódromo, magrinho, sardento, nariz vermelho, bochecha de buldogue. Uns treze anos e camisa de time de futebol americano.

— Me leva na Cultura Inglesa — diz o guri.
— Cultura Inglesa de onde? — pergunta Maurício.
— Na Cultura, ué! Tu não sabe?
— Cultura Inglesa do Jardim Botânico, do Leblon, de Botafogo, qual bairro?
— Aqui perto!!! — ele grita.

Ele grita, Testemunha. Ele grita! Ihihihihi.

— Torturadores não têm ideologia. São covardes, são assassinos e não mereceriam em momento algum serem citados como exemplo. E muito menos em uma casa legislativa que carrega o apelido de casa do povo.

No rádio, tocam as notícias no programa do jornalista predileto. E fica resolvido, entre Maurício e o guri, que o destino é a filial da Cultura Inglesa do Jardim Botânico. O garoto está bem à vontade. Recostado como em casa, tem um dos pés enfiados embaixo do banco do motorista, o joelho cutucando as costas de Maurício. E o outro pé, calçando o tênis colorido de lacre vermelho, repousa em cima da elevação por onde passa o eixo do carro. Quando Maurício olha para trás, vê a sola toda enlameada. Onde foi que esse putinho, num dia quente e seco, conseguiu encontrar lama? Testemunha, você sabe: pior do que um garoto mimado, só um que a mãe e o pai alisam fingindo que se importam. Eles ficam grandes e sem caber no armário, ihihihi.

— Eu tô atrasado — diz o garoto.

Ele tá rindo de você, Maurício.

— Chega! — ele diz.
— Chega o quê? — responde o guri.
— Não é com você não, garoto.

É comigo, testemunha. Será possível? É comigo! Ihihihi

— Nós estamos num período da nossa história que é pra confundir qualquer um. A classe política fuma droga toda manhã, bate cabeça, vai criando umas coisas cada vez mais absurdas.

Porra de locutor chato. Troca de estação! Coloca um Heavy Metal, Maurício. ihihih.

— Shhhiu.
— Não diz Shhhhiu pra mim, pândego!
— Shhhhiu.
— Shhhhiu.
— Shhhhhhhiu.
— Shhhhhhhhhhhhhhhhhiu… estúpido!

O moleque digita no celular, olha através do espelho retrovisor. Parece rir da tragédia. É da sua cara, idiota. Burro!

Parado no sinal vermelho, o pândego curva a cabeça para baixo, quase encostando a testa no volante. Eu conheço a coreografia, você vai conhecer também. O ar preenchendo os pulmões e o cérebro tentando se ocupar de outras coisas. Concentra-se nas vozes de fora da cabeça, as mesmas que regaram as sementes daquelas de dentro, ihihihi! E veja você: ele só me ouve quando eu quero. Temos toda a privacidade necessária por aqui.

— A Câmara e o Senado usam jatinhos da Força Aérea num país que tem quatorze milhões de desempregados e déficit nas contas. Isso não é viagem oficial. O nome disso é pouca vergonha!!! — locutor, blá blá e blá.

— Quer ouvir música? — diz Maurício.
— Não. Obrigado — responde o guri.
— E o volume?
— Oi?
— Tá bom?
— Tá bom o quê?
— O volume.
— Volume do quê?
— Quer que abaixe o volume do rádio?
— É… não.

O garoto tem olhinhos azúis de boneco da Disney mas gosta de encarar com deboche. Não fica bravinho, Mau. Ele deve achar você um desqualificado. shhhhhhhiu… As mãos sobre a direção pesada tocam o táxi adiante, com essa porra desse garoto no branco de trás, testando as nossas paciências. O carro pára, a porta do motorista abre e passos rodeiam a lateral do Siena.

— Sai! Sai do carro agora! — diz um dos três assaltantes.

Maurício solta o cinto de segurança. É puxado para fora. Deus me proteja, pensamos. São três homens encapuzados.

— Vambora! Vamo!

Puxados pelos braços, lembramos. O guri, lesado. Eles vão levar o guri junto. Maurício se agarra à porta, sem pensar, para tirar o moleque de dentro. Não vai deixar o garoto ali de jeito nenhum. Leva um soco na boca. Debate-se. Vem a joelhada na costela. Cai no chão um dos três capuzes e tem gente em volta. Talvez seja o rosto descoberto o que salvou o nosso cara do tiro na testa.

— Passa ele pra trás!

É colocado no banco de trás do Siena amarelo.

— Olha a merda! Por isso que eu não gosto de roubar táxi.

Só agora os assaltantes percebem o passageiro no banco de trás. Mas como dá trabalho, esse fedelho! Maurício e o moleque vão espremidos no meio. O carro fica livre do engarrafamento raspando lateral das rodas num meio-fio, ganha a pista no sentido oposto, é uma cagalhança! Dão uma arrancada, cortam os outros veículos em volta, aceleram na direção dos motoqueiros que vão à frente. A rua lotada de gente bem pelo horário de pico do tráfego e os ladrões patetas parando na beira duma calçada perto da praça Sibelius, puxando Maurício para fora e mantendo o fedelho no banco de trás. O nosso cara agora vai no porta-malas. Segura a onda Mau-Mau, ihihihi!

Tudo escuro. Nós não cabemos neste armário. Ele remexe, leva uma espetada no traseiro do bico de fenda de uma chave cruz dentro do bagageiro. Contorce. Faz trajeto mental, inferindo para onde o carro vai pelos movimentos que identifica. Fracassa. E eu pergunto:

— Você é descendente de alemão? Teu avô andou fazendo merda por aí?
— Me deixa!
— Fala a verdade, Maurício. É importante. Pode ser uma jogada do Ibrahim.
— Cala a boca, por favor!
— Eu tô tentando ajudar! Não faz assim.

Ele não pode ficar só me ouvindo. Ele tem que me entender! Você entende, testemunha?

Sacolejos, raspada de pneu e ferramentas de aço cromo em pequenas colisões. Pouca coisa acontece aqui dentro, afora as dores no ombro e nos joelhos mal dobrados para caber no armário. As gotas de chuva salgada voltam a passear pela retina; as dezessete horas voltam a parecer três da madrugada e o dia quente vira vento gelado na espinha; voltam à cabeça as imagens de quando nós levamos a guria àquela sarjeta; ora, então que se faça!

Segurando a garota pelos braços, ele abre a mão aos poucos, deixando ela escorrer em direção ao chão, lentamente, até pousar deitada. E por uns segundos os olhos perdidos da drogadita se acendem. Expressão de tristeza, a boca treme, prepara o choro, parece uma menininha. No fundo é o que ela é. A iluminação da rua não é boa, mas ele nem precisa que a claridade chegue aos olhos da garota para imaginar o nosso rosto refletido ali. Shhhhhhiu… covarde.

O covarde não largou a moça na rua. Respirou, voltou a pensar. Voltou a doer. Dobrou o casaco na calçada, deitou a cabeça dela, chamou um amigo de cooperativa e deu um jeito de a garota chegar ao hospital sem que ele estivesse junto. Sem dar explicações. Shhhhhiu… covarde. É melhor esquecer.

Os bandidos nos trouxeram a um campo aberto. Terra, grama baixa e bambuzal em volta, sabe-se lá onde. Agora Maurício está fora, correndo pela vida. O carro avança, ele tropeça e vai de cara no chão. E quando o táxi chega para atropelá-lo, desvia. Brincadeira de gato e rato que recomeça várias vezes sob gargalhadas. É posto de volta no porta-malas depois de mais uma coronhada. Agora ele ouve os gritos do moleque, a gozação dos bandidos.

— Ia te colocar vestido de calcinha, se tivesse.
— Deita ele de bruços!
— É, malandro, vai virar bonequinha.

O resto são barulhos que parecem pancadas. Rugidos animais. Gritos de dor da voz esganiçada do guri. Maurício sai do porta-malas para entregar tudo o que tem aos bandidos. E agora é o guri trancado lá.

— Cata o dinheiro. Já viu o porta-luvas?
— Cata o celular. A tela.
— Tem relógio? Tem aparelho de som?
— Tinha. Já arranquei o som e tudo.
— Espera 15 minutos e depois pede socorro — diz um deles.

Acabou lambança. Passa o tempo, nada acontece, Maurício nada faz. Então o guri pede socorro batendo de dentro da mala do Siena.

— Ãhn… Ãhn… — Maurício responde.

São muitos chamados, não consegue se concentrar no que fazer. Olha e olha em volta.

— Ãhn… Ãhn…

— Quando começamos a condenar esses tipos, o presidente começa a soltar corruptos no indulto de Natal. Quer dar presente de Natal pra corrupto? Dá um peru. Dá um peru de natal pros corruptos!

O programa de rádio continua. Não só ele. Maurício se desmancha em vozes, nós de si, de mim.

— Buonasera, amico!, — Não é hoje que você vai morrer na minha teia, cão nazista, — Conheço palavras poderosas que você ainda não pode usar, — Você precisa relaxar, compagno!, — Vai morrer aos poucos, — Para curar. Para tocar a face de Deus, — Precisa beber das águas termais do vale entre coxas, — esquálido e de ossos se projetando, — Tem todos os dentes inteiros? Está em jejum?, — igual às criancinhas que você enviou ao inferno na terra, — Quase nada poderá fazer se não estiver em jejum!, — igual aos meus tios, cão.

E você, testemunha, já recebeu sua instrução e pode fazer a sua parte. Estamos aqui para produzir. Fala alguma coisa com ele. Vai! Ele ouve. Fala alguma coisa! Anda logo, porra… ihihih! Vamos produzir. Aqui você não é vedete.

O Rato, 15/05/2020.

Boechat faz parte da coleção Betume, Contos do Asfalto. São histórias interligadas. Lendo os próximos contos, você saberá do caos deixado pelos bandidos no trajeto do táxi e muito mais. Acesse os outros contos abaixo:

  1. Cruzamento, Antiprólogo
  2. Boechat
  3. As Damas Entram e Saem
  4. Tração Humana
  5. Sigo Bem
  6. Retorno a Cem Metros, Antiepílogo