1. Cruzamento, Antiprólogo

O Rato Cinza
5 min readAug 12, 2020

O locutor diz “todas as éguas a postos nas cercas móveis”. E na rua, todos os motoristas estão a postos nas gaiolas de aço. “A-teeen-çãoo! Foi da-daa a par-ti-da! Começa o primeiro páreo desta quinta-feira no hipódromo da Gávea”.

A rua está quente. Cabeças, andaimes, asfalto, bancos e guaritas de ônibus, tudo o que há na cidade. Na cabine do caminhão azul se ouve a transmissão da corrida.

“Largada excelente! Lady Godiva avança e Five PM por fora. Miss Charming e Wonder Lady disparam. As éguas contornam a curva do Mengão, entrando pela reta oposta do hipódromo.”

O caminhão azul, o ônibus amarelo e o Celta prata vão se encontrar daqui a não muito. Está para acontecer. O malabarista de sinal de trânsito e o anotador do jogo do bicho vão testemunhar? Os universitários começam a pingar nos bares em torno do entrelace de avenidas em frente ao Jockey Club. Vai ser ali.

Dezessete horas, dois minutos. O fluxo de veículos engrossa de repente, como mingau no fogo. Apenas a pista para o centro está congestionada. Do bar, só serão vistas as cabeças se aglomerando. Da banca, o anotador da loteria clandestina verá tudo. Se não estiver bebendo com o policial.

Nesta espessura nova de transito, um táxi Siena deu a sorte. Passou pela confluência da auto-estrada Lagoa-Barra e das ruas de Gávea e Leblon. Segue adiantado no sentido do Centro da Cidade, já próximo à Rua Jardim Botânico. O ônibus amarelo e o Celta prata, ainda separados, ficarão presos no funil.

“Pisam na seta dos oitocentos metros finais! Five PM tomou a ponta. Um pescoço de vantagem para Wonder Lady e Belle de Jour agarrada em terceiro! Lady Godiva vem em quarto; em quinto, Red Star; em sexto, Manteiguinha de Minas; Miss Charming em sétimo e Tiazinha de Camisola em oitavo!”

Uma inédita onda de bicicletas e motos inunda a rua. Seus fluxos vazam entre as frestas dos carros e ônibus, procurando o menor trajeto para o teatro do hipódromo. O caos, o embolo de linhas, tudo instalado. A pós-moderna sinfonia de buzinas das motocicletas e dos carros toma conta do bairro, hoje mais do que nos dias normais.

Buzinaço e som de pneus cantando não muito longe. O táxi Siena fez o retorno em alta velocidade fazendo fumaça de borracha no asfalto e forçando os carros da frente a desviarem do traçado. O espelho esquerdo fica pelo caminho. A pancada no cotovelo do artista de trânsito é forte. Ele vai embora a pé sem um dos malabares.

“Manteiguinha de Minas tomou a quarta! Tomou a terceira! Tomou a segunda! Láaa veeem Manteiguinha de Minas com a máquina no lombo! E vai dominando! Vem chegando Tiazinha de Camisola! Tiazinha dominou! Livra a cabeça e cruza a linha final!”

Dois motoqueiros se jogaram na calçada para não serem trucidados pelo táxi. Ciclistas tomam sentido contrário, o táxi Siena some no asfalto. Neste embolo, com o vazio que se criou na pista rumo a São Conrado, uma BMW invade essa contramão para sair do funil. Sem visão, atropela um rapaz.

“Vitória para Tiazinha de Camisola, segundo Manteiguinha de Minas, depois Lady Godiva, Five PM, Red Star, Miss Charming, Belle de Jour, Wonder Lady. Grande vitória no primeiro páreo de quinta-feira! As éguas vão deixando a pista de areia com excelente comportamento.”

“Já era! Virou presunto.”
“ Vacilão ficou moscando na frente do carro!”
“ É nada. A culpa é da vovó ali! E o cara tá vivo.”
“ Devia estar de conversa no celular e acabou atropelando.”

Chega o caminhão azul. O Celta prata e o ônibus amarelo estão mais à frente. Uma senhora sai nervosa da BMW. Uns consolam, outros esbravejam.

“ Vamo andando com essa tranqueira aí, caralho.”
“ Dá um tapa pra esquerda e mete o pé com esse ônibus, negão.”
“ Essa porra não é helicóptero não, arrombado! Só dá pra sair daqui voando.”

Dezessete horas, quarenta minutos. Agora os dois sentidos das pistas rentes ao paredão do Jockey Club estão congestionados. Buzinas gritam, viaturas da polícia chegam, alguns dos estudantes pedem as contas dos bares e vão em direção ao ponto de ônibus mais próximo ao acidente. O homem grisalho e depravado sai escoltado do ônibus azul enquanto a ruivinha de coxas roliças se debulha em lágrimas. O anotador do bicho, sem clientes, vira o banquinho e estica o pescoço de longe. Chega o camelô; chega uma moça baiana, aqui de férias; chega uma porta-bandeira da São Clemente, mas ela é estudante de ciências sociais, o candomblé é do seu estudo de campo. Chega o fiscal de trânsito, o mendigo do humaitá com sua calça preta rasgada; chega a professora do município. A rua enche sem parar. A ambulância leva embora o moço atropelado, que não vai presenciar o acontecimento. Ninguém sabe porque tem tanta gente ali.

“Ah é? Isso aí tu pode enfiar no otário brocha do teu pai”. É o que se ouve da janela do caminhão azul.

Dezoito horas, trinta e cinco minutos. Um “Cala a boca, piranha” sai pela janela do Celta prata.

O povo se atiça, o policial gesticula. O que se tem para ver é a BMW e o Audi Q7 enguiçados, dificultando o nó, em frente a uma poça de sangue e um tapete de vidro.

puta, piranha, viado, burro, lesado, lesma, babaca, cretino, favelado, crioulo, capado, corno, ensebado. Tudo isso durou só um par de minutos e a maioria dos insultos ficara restrita ao interior vedado dos veículos, tempos novos que são. Dezoito horas, cinquenta minutos. O estrondo trará a paz. Está acontecendo.

O buzinaço cessa e todos os rostos se voltam à grade do Hipódromo onde está a entrada do teatro. Rostos iluminados por luz selvagem, amarela e branca. Faz arderem as peles, os esqueletos e as almas. As mandíbulas que não estão fazendo as faces boquiabertas não são confiáveis. Não há ônibus, amarelo ou azul, que não fique pequeno diante do fenômeno que alcança vinte metros.

É óbvio que a imprensa vai dar nexo científico ao que acontece neste instante. Mas o que importa é que o se vive hoje, quando as bocas dos motoristas cariocas cessam de praguejar durante os cinco minutos mais intensos da luz. Um acontecimento que ficará conhecido como o Clarão da Gávea nas noites bêbadas do futuro na Pizzaria Guanabara. Anote-se.

Vinte horas, onze minutos. Os reboques já levaram os carros. O Clarão da Gávea já ganhou o nome Fogaréu na boca do povo. Estamos, afinal, no maldito país e na maldita cidade onde não se tolera nenhum nome garboso. E tudo vira piada na Babilônia. De qualquer forma, é impossível que este evento tenha sido apenas uma explosão de bueiro. Isto ninguém vai nos tirar. Não até o jornal da madrugada.

O Rato, 07/03/2020

Cruzamento faz parte da coleção Betume, Contos do Asfalto. São histórias interligadas. Lendo os próximos contos, você saberá quem estava dentro do táxi, do caminhão, saberá o que aconteceu no hipódromo. Saberá quem foi atropelado. Acesse os outros contos abaixo:

  1. Cruzamento, Antiprólogo
  2. Boechat
  3. As Damas Entram e Saem
  4. Tração Humana
  5. Sigo Bem
  6. Retorno a Cem Metros, Antiepílogo

--

--